Pensem em indivíduos artísticos autônomos, elementos isolados que possam perfeitamente se afirmar na sua generosidade plástica, que são chamados de desenhos mais por um vício de linguagem que adere rápido demais à convenção, possivelmente transmitido pelo suporte de papel, mas que estão claramente determinados pela prática pictórica. Esses desenhos ou pinturas sobre papel já seriam poderosas manifestações de uma investigação artística que procura examinar limites internos e externos da forma: transparência e opacidade em jogos simultâneos sobre o fundo branco, um corpo que se expande de um modo assimétrico, sempre em curvas, ameboide que, no entanto, não é contido inteiramente pelo meio que o contém: invade o papel como se uma parte desse ente maior apenas deixasse a marca de sua passagem e de lá se retirasse depois de registrado na pintura aquele momento de sua existência.

Agora pensemos em outra investigação; uma que coletasse esses diversos testemunhos da passagem de um ser maior, que reconhecesse a autonomia de cada um dos desenhos ou pinturas e os agrupasse como a manifestação total do acontecimento plástico em que resultaram as diversas manifestações da materialização desse ente cuja existência parece continuar além da obra. Temos agora um legítimo uso da palavra comunidade: os indivíduos – desenhos ou pinturas – reunidos têm de fato uma unidade comum, coisa rara de se encontrar nos grupos a que se refere o uso bastardo da palavra vulgarizado no cotidiano, e todos são diferentes, nenhum é igual a outro. Temos, então, a potência a que foi elevado o conjunto dos indivíduos que se manifesta no grande painel. Essa é a pintura, por favor, não falemos mais de desenhos.

Em termos históricos não deixa de ser um modo, consciente ou inconsciente, pouco importa, de materializar quase cem anos depois uma investigação cubista ajustada, não apenas à experiência acumulada, como a uma nova sensibilidade gerada pelos conflitos contemporâneos. Vejam que Germana Monte-Mór revira pelo avesso, não o objeto do cubismo, mas sua questão. É claro que a artista não está mais à procura de nenhuma verdade planar, ou de desconstrução da ilusão de profundidade da perspectiva geométrica, tarefa que consumiu as obras magistrais de artistas que, de Cézanne, Picasso e Braque, chegaram até o Expressionismo Abstrato. Não temos o espaço vazio, a extensão ideal sem limites, continente das coisas no mundo e o dilema de sua representação, nem mesmo aquele da vertente construtiva, na qual a espacia-lidade é inventada pela justaposição ou superposição de planos e a tensão das relações cromáticas, a espacialidade gerada pela extinção do ponto de fuga.

Aqui, no painel, como cada elemento age com força própria e autônoma, cada um tem seu próprio vetor – um eixo que aponta para uma direção e ao mesmo tempo reage com igual intensidade para o interior de cada unidade. A espacialidade do painel não é gerada pela desconstrução da perspectiva, mas pela invenção dessas forças autônomas, todas divergentes entre si e ao mesmo tempo solidárias, que nos obrigam a diversas tomadas de posição. Essas múltiplas direções, cujo conflito é apenas limitado pela unidade plástica, têm a ver com a pintura maior que passou e nunca se realizou completamente. Sua força encontra-se tanto no que está presente, quanto no que falta. Caso se entregasse numa falsa integridade, coerente e coesa, a pintura desmentiria a sua verdade. Não há mais fragmentos no mundo já desiludido. Há, sim, a emergência das unidades discretamente poderosas que, reunidas, afirmam uma totalidade contraditória e simultaneamente coesa.